O conceito de Cultura Infância é essencialmente transversal. Isso se traduz na heterogeneidade das pessoas que reconhecem nele um ponto de interesse comum. Entre os integrantes do Grupo Nacional Cultura Infância estão militantes que, originalmente, orientam suas ações em benefício da primeira infância (período que compreende os seis primeiros anos da vida de uma criança).
É o caso de Cardell, atriz e e diretora da companhia hispano-brasileira La Casa Incierta. Além de compor o Grupo Nacional Cultura Infância, ela também faz parte da Rede Nacional pela Primeira Infância, que aglutina mais de 200 organizações nacionais que trabalham com o segmento. Como Clarice deixa claro, a Rede não reúne apenas atores sociais ligados aos campos da cultura e das artes, mas que abrange outras esferas, como a saúde a assistência social. “Mas a cultura é ‘A’ porta (para o acesso a estas discussões)”, define Clarice Cardell, quando questionada sobre o papel que os atores culturais têm desempenhado no debate sobre políticas públicas transversais. “A cultura é a agulha que costura tudo. É a linha que costura todas as políticas públicas transversais. Se um gestor entendesse a cultura, como um elemento comunicador, capaz de ligar todas as esferas, ele poderia fazer uma revolução”, avalia.
A necessidade de uma militância voltada especificamente para a primeira infância se dá porque o segmento “é muitas vezes deixado de lado”. “Existem índices de medição que mostram como é pequeno o percentual de recursos, a verba pública, destinada para crianças até os 6 anos. Em alguns casos, fica em 0,3%”. Áreas como a educação dão pouca atenção à “primeiríssima infância” (crianças até os 3 anos de idade), por conta de um sistema educacional que procura partir do processo de alfabetização. No campo da cultura e das artes, avalia Clarice Cardell, a situação não é menos grave.
A estratégia de ação adotada por ela e a companhia La Casa Incierta é dupla: envolve a ação política e a militância no contexto da sociedade civil organizada; e as “ações de formiguinha”. “A companhia foi fundada em Madri (Espanha), em 2000. Partimos do entendimento que era necessário impulsionar a criação para a primeira infância – não pensando-a como um filão, mas como um local de cidadania. (La Casa Incierta) é uma pioneira no mundo com espetáculos de teatro para crianças, preferencialmente, de zero a 3 anos. Alguns espetáculos vão até o público de 5 anos”, rememora. Há 4 anos, o grupo transferiu sua sede para o Brasil e milita pelo acesso à cultura na primeira infância.
Marco legal
Clarice Cardell destaca a importância da Lei nº 13.257, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff em 8 de março 2016. No art. 15 do Marco Legal da Primeira Infância, é determinado que “as políticas públicas criarão condições e meios para que, desde a primeira infância, a criança tenha acesso à produção cultural e seja reconhecida como produtora de cultura”. “O entendimento de que a criança é uma cidadã, que gera cultura e tem direito de acesso a ela, é fundador. É assim que se forma a cultura de um país, é assim que se estabelece seus alicerces”, afirma a atriz.
Este é o entendimento que deve nortear a produção artística, na visão de Clarice Cardell. “Às vezes me perguntam o que tenho para ensinar as crianças que assistem nossos espetáculos. Eu respondo que não tenho o que ensinar. Na verdade, sou eu que aprendo com elas”, conta. A atriz explica que é notável, desde a primeiríssima infância, o “olhar poético”. “Acontece que, com a educação que temos, o ser humano vai sendo castrado em sua capacidade criativa, vão fechando nossa capacidade poética. Quando nos apresentamos em creches, é comum ver um olhar imenso em uma criança de 3 ou 4 anos e um olhar castrado, sem imaginação, nos pais dela”, explica.
Para Cardell, é preciso compreender as crianças da primeira infância como sujeitos e, assim, aprender com elas. A militância é necessária e se dá em todos os espaços, incluindo dentro de casa. “Temos um currículo educacional, que trata muito de questões estéticas para a primeira infância, que foi elaborado pelo MEC, na gestão Haddad. É algo de ponta, se comparado a qualquer outro currículo, em qualquer parte do mundo. O problema é que, ao sair do âmbito federal e passa para as secretarias estaduais, vai sendo castrado. É preciso que essa deformação pare de acontecer”, detalha Clarice Cardell. “Fazer política no Brasil é muito difícil, mas é importante que a matriz, como a deste plano do MEC, seja consistente, que aponte os caminhos certos. Pior quando a base de que se parte já está equivocada”, garante.